Na madrugada opaca de Lima, silenciou-se Mario Vargas Llosa, aos 89 anos. Não houve cerimônia, nem cortejo: apenas o anúncio breve dos filhos e a reverberação de suas páginas entre os que ainda leem com fome.
Vargas Llosa era talvez o último farol aceso do chamado boom latino-americano — aquele tempo em que a literatura do sul explodia em línguas estrangeiras e nos olhos da crítica europeia. Mas, mais do que parte de um rótulo editorial, ele foi um cronista incansável do poder e de suas engrenagens invisíveis. Escreveu o ruído das instituições, o desconforto da memória, os becos de uma moral que nunca se resolve.
Deixou uma obra extensa e inquieta: A Cidade e os Cachorros, com seus cadetes endurecidos; Conversa na Catedral, onde o destino se esconde num bar esquecido de Lima; A Festa do Bode, que expõe a anatomia do medo sob o regime de Trujillo. Sua última oferenda, Le dedico mi silencio (2023), parece título de epitáfio: um silêncio dedicado, talvez, ao ofício da linguagem, à América Latina que ele tentou traduzir.
Llosa também transbordou para o cinema. Pantaleão e as Visitadoras virou filme em 1999, dirigido por Francisco Lombardi. Antes, A Cidade e os Cachorros ganhara versão audiovisual em 1985. Em 2005, A Festa do Bode foi adaptada por seu primo, Luis Llosa, numa narrativa dura, sem romantismos.
Além da literatura, houve a política — e nela um ruído dissonante: a candidatura à presidência do Peru em 1990, a cidadania espanhola depois, as posturas que dividiam os leitores entre o autor e o homem. Mas talvez isso também seja parte de sua complexidade: Vargas Llosa não queria agradar, queria provocar.
A morte de Vargas Llosa é o fim de uma era. Seu desaparecimento físico não apaga a voz que atravessa continentes e décadas. Ela segue ecoando em frases longas, em personagens dilacerados, em perguntas que jamais foram respondidas.
Num continente que sempre arde, Llosa tentou iluminar, com palavras, os labirintos da história. E agora, resta o silêncio — dedicado, literário, definitivo.