Entre a queda do Muro e a aurora da internet discada, a Europa vivia um transe tecnocolor. Zooropa, oitavo álbum do U2, que completa 32 anos de lançamento neste domingo, 6 de julho, é filho legítimo dessa vertigem: um diário de viagem – escrito em pixels, zapping e estática – sobre uma geração hipnotizada pela propaganda, pelo cabo coaxial e pelos primeiros fantasmas da globalização. Produzido por Flood, Brian Eno e The Edge, o disco nasceu às pressas, num intervalo de seis meses da megalómana Zoo TV Tour, e carrega justamente o cheiro de backstage e de circuito queimado: tudo pulsa, tudo corre, nada sossega.
A liturgia glitch de Numb
O álbum traz The Edge recitando “don’t move, don’t talk” sobre um mantra industrial que faria Brian Eno sorrir de canto de boca. Numb soa como se Samuel Beckett tivesse trocado o palco pelo sampler: uma lista minimalista de proibições que reflete a anestesia pós-Guerra Fria, em que abundância de informação rima com paralisia.
Lemon: Bowie encontra Kraftwerk num neon cítrico
No segundo single, Bono canta em falsete, embalado por um groove de baixo elástico que funde disco music e techno berlinense. É a lembrança da mãe, filmada em Super-8, projetada num telão de realidade aumentada. Há ecos de Bowie em “Young Americans”, mas filtrados pelo fetiche eletrônico do início dos anos 90, quando clubes como o Tresor viravam templos pós-industriais.
Stay (Faraway, So Close!): balada para anjos perdidos
Coescrita para o filme homônimo de Wim Wenders, a canção é o coração lírico do disco – um aceno à canção de amor clássica que, de repente, cai num solo saturado de distorção, lembrando que até o afeto, em 1993, vinha com ghosting e interferência analógica.
Leituras, ruínas e cibercafés
Gravar Zooropa foi como escrever Ulisses num laptop Toshiba de 16 MHz: Joyce ainda está lá, mas cada frase pisca em verde-fosforescente. A banda sampleia vozes de TV, slogans publicitários e transmissões de rádio, antecipando o zapping existencial que David Foster Wallace narraria em Infinite Jest (1996). Se em Achtung Baby o U2 trouxe o muro derrubado para dentro do estúdio de Berlim, aqui eles ligam o velho continente na tomada da recém-assinada União Europeia de Maastricht e perguntam: “Que tipo de sonho coletivo é esse, afinal?”
Musicalmente, o disco é a curva mais ousada da discografia: camadas de sintetizadores, batidas quebradas, loops industriais. Mas ainda há rock: Daddy’s Gonna Pay for Your Crashed Car exibe guitarras serradas que lembram Nine Inch Nails, enquanto The Wanderer põe Johnny Cash vagando por um deserto pós-apocalíptico à la Cormac McCarthy – country folk em solo nuclear.
Legado satélite
Apesar de vender “apenas” sete milhões (contra as dez de Achtung Baby), Zooropa ganhou o Grammy de Melhor Álbum de Música Alternativa e, três décadas depois, continua sendo o ponto onde o U2 trocou o idealismo stadium-rock pela ironia pós-moderna. Talvez por isso a banda tenha sentimentos ambíguos: o disco captura um instante em que o grupo correu perigo criativo real, antes de retornar a formatos mais seguros em Pop (1997) e All That You Can’t Leave Behind (2000).
Em retrospecto, Zooropa funciona como uma fotografia Polaroid de 1993: cores saturadas, bordas borradas, mas um retrato fiel do espanto europeu diante de satélites geoestacionários e outdoors digitais. É o U2 lendo Baudrillard, injetando cafeína em cibercafés nascituros e sintonizando Bukowski no walkman.
No fim, fica a sensação de que o disco não foi apenas escutado – foi captado via antena parabólica, entrecortado por ruído branco e comerciais de meia-noite. Se você aceitar o convite, ainda dá para ouvir as velhas TVs chiando ao fundo, repetindo o bordão: “Everything you know is wrong.”