Joey Ramone morreu ouvindo uma canção do U2, música de outro planeta musical, e isso, por si só, já parece roteiro. Em 15 de abril de 2001, aos 49 anos, após sete anos lutando contra um linfoma, o vocalista dos Ramones despediu-se no Hospital Presbiteriano de Nova York com “In a Little While” tocando ao fundo.
Anos depois, em 2014, Bono contou à rádio holandesa Radio 538 que a família de Joey confirmara o detalhe. Andy Shernoff (The Dictators) endossou a história. O fato virou mito, desses que ajudam a decifrar o lugar de Joey na cultura pop.
“In a Little While”, lançada pelo U2 em 2000 (All That You Can’t Leave Behind), nasceu como um pequeno soul de ressaca, uma canção de amor compacta que flerta com o doo-wop, com aquela cadência de fim de noite e promessa de amanhecer. Nada de guitarras serrilhadas nem três acordes na jugular. É outra gramática. Ainda assim, a cena derradeira de Joey ouvindo essa faixa cria um curto-circuito fascinante: o punk que ensinou uma geração a tocar “1-2-3-4!” encontra, no leito de morte, a delicadeza melódica de uma banda de estádios que sempre o reverenciou.
Não é só coincidência. O U2 passou a vida citando os Ramones como bússola — do impulso juvenil ao tributo explícito em “The Miracle (of Joey Ramone)” (2014). E Bono, ao saber do momento final de Joey, disse que aquela música “mudou de sentido” para sempre: de canção íntima a espécie de gospel laico. Faz sentido. “In a Little While” fala de tempo que se encolhe e se expande, de um futuro que chega logo (“em pouquinho tempo”) e que, no ouvido certo, soa como promessa de descanso. No hospital, a letra ganhou outra gravidade: não mais a manhã depois da farra, mas o instante depois da vida.
O choque estético, punk vs. pop-soul, só reforça a estatura cultural de Joey. O frontman que fez do minimalismo elétrico uma ética (velocidade, concisão, urgência) morre embalado por uma canção que celebra a ternura. Há poesia aí: o artista que sempre cantou como se o mundo precisasse andar mais rápido encontrou, no fim, um compasso lento. E esse contraste conta algo sobre a trajetória dos Ramones: por baixo do couro e das jaquetas, havia vulnerabilidade. O segredo sempre esteve na fricção entre dureza e doçura, entre ruído e melodia.
Culturalmente, esse “último play” funciona como epílogo perfeito para a história do punk: o movimento que abriu portas para o faça-você-mesmo e para a honestidade brutal reconhece, no apagar das luzes, a beleza de uma canção que não lhe pertence, mas que o compreende.
Não há contradição; há síntese. Joey não “traiu” o punk no leito. Apenas confirmou que a boa canção, venha de onde vier, encontra seu destino no corpo de quem precisa dela.
Revisitar “In a Little While” depois de saber disso é inevitável. O vibrato de Bono parece sussurrar um consolo que nunca foi tão preciso; o baixo elástico, a bateria contida, a guitarra em filigrana: tudo conspirando para uma despedida sem gritos. E, quando você voltar aos Ramones, “I Wanna Be Sedated”, “Sheena Is a Punk Rocker”, “Bonzo Goes to Bitburg”, vai perceber que essa energia queima diferente, mais nítida, como se a história final de Joey acendesse novas camadas de sentido no catálogo todo.
No fim, a anedota não é só curiosidade de fã. É um gesto de montagem: punk e pop, pressa e calma, ruído e silêncio, todos editados num último fade-out. “Em pouquinho tempo”, diz a canção. Joey sabia. E agora nós também.