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“A Tempestade ou O Livro dos Dias” — Legião Urbana e o adeus em voz baixa
Último álbum gravado por Renato Russo completa 29 anos de lançamento neste sábado, 20, e retrata o inventário íntimo do artista em tom de despedida.
Por LockDJ
Publicado em 20/09/2025 11:25 • Atualizado 20/09/2025 11:25
Música
A Tempestade é um testamento emocional, a fita deixada na mesa antes de sair (Foto: Divulgação)

Lançado em 20 de setembro de 1996, “A Tempestade ou O Livro dos Dias” é o sétimo e último álbum de estúdio da Legião Urbana com Renato Russo em vida. Não é um disco de hinos para estádios; é um inventário íntimo, febril e por vezes devastador, de um artista que já escrevia à beira do fim.


Se nos álbuns anteriores a Legião combinava crônica geracional, política e afetos em tom de manifesto, aqui o gesto é outro: confissão. O grupo soa mais contido, com pianos, cordas e climas que substituem o ataque de guitarras de “Dois” ou a urgência elétrica de “Que País É Este?”. O resultado é um trabalho de atmosfera crepuscular que, à distância, parece menos um projeto “pensado” e mais um caderno de última hora, onde cabem medo, fé, culpa, ternura e um desejo quase infantil de permanecer.

Entre as faixas, “A Via Láctea” é o coração do disco e, talvez, o autorretrato mais desarmado de Renato. Não se trata de uma canção de esperança fácil; é um pedido de amparo dito com a lucidez de quem sabe que a noite não passa porque a gente quer, mas porque o tempo acelera.



A melodia se move como quem procura tateando as paredes de um quarto escuro, e a letra, em tom de oração íntima, alterna cansaço e vontade de seguir. É bonito perceber como a canção preserva a dicção legionária, com frases diretas, imagens claras, ao mesmo tempo em que abandona a retórica do herói ferido para assumir apenas o homem vulnerável, quase menino.

No outro pólo, “O Livro dos Dias” funciona como fecho e chave do título alternativo do álbum. É menos narrativa e mais rito de passagem: um agradecimento hesitante, um balanço dos amores e perdas, dos erros que nos pertencem e das lembranças que nos ultrapassam.


A canção enumera afetos, pequenas graças, fragmentos de cotidiano, como se cada dia fosse mesmo uma página, e ao final o livro pudesse ser fechado sem ressentimento. Há um gesto de reconciliação que contrasta com a aspereza de momentos anteriores da banda; não é otimismo, é mansidão tardia.

O disco, porém, não é monolítico. “1º de Julho” traz um brilho raro nesse repertório: carta à vida, recado aos seus, respiro de luz. Já “L’Avventura”, evocando Antonioni, fala de desencontro e maturidade afetiva sem a pressa dos anos 80 — uma canção de sala vazia, taça em cima do piano, gente que aprende a falar baixo para não ferir mais. E quando chega “Dezesseis”, a Legião reaparece em modo conto urbano: violência juvenil, destino truncado, moral ambígua, a velha habilidade de Renato Russo para condensar romance, reportagem e conto em quatro minutos. Mesmo Soul Parsifal, com seu perfume de standard e certa doçura cosmopolita, serve ao mesmo arco: lembrar que entre a precariedade do corpo e o ruído do mundo ainda existe afetividade possível.

A forma como as letras refletem os últimos momentos de Renato não pede decodificador biográfico, pois está nos verbos, nos silêncios e no tempo das palavras. O compositor, que sempre escreveu como quem arregimenta uma geração, agora rabisca tipo alguém que arruma a própria gaveta. O eu lírico aceita a fragilidade, pede perdão sem drama, reconhece falhas e se autoriza a uma ternura que, em outros anos, talvez soasse piegas. Não há panfleto nem tese; há humano. E a banda, Dado e Bonfá, acompanha com sobriedade, evitando que arranjos “maiores” empurrem o depoimento para o melodrama. O produtor (e os teclados e texturas que vestem o álbum) escolhe a discrição: tudo existe para não atrapalhar a voz.

Em comparação ao cânone legionário, “A Tempestade” se diferencia pela economia e pelo recolhimento. Se “Dois” inventou a balada moderna brasileira de banda e “As Quatro Estações” ampliou o alcance lírico e melódico do grupo, este álbum retira camadas: menos slogans inesquecíveis, mais frases que doem em silêncio; menos refrões para cantar de punho erguido, mais trechos para mastigar sozinho no ônibus. Não é um disco “perfeito”, há oscilações, arestas, variações de inspiração, mas justamente por isso ele soa verdadeiro: obra de circunstância, não de laboratório.

Para muitos fãs, é um testamento emocional, a fita deixada na mesa antes de sair. Uma parte da base prefere a Legião da fúria juvenil e dos refrões incontornáveis; outra encontra no derradeiro álbum o Renato mais íntimo, o que envelhece bem porque fala do que nos ronda quando a música acaba: o medo, o cuidado, a despedida.


“A Tempestade” não convoca assembleias; convida a sentar à beira da cama. Em tempos de barulho, essa escolha segue como um ato de coragem estética. E, por isso, o disco permanece, não como monumento, mas como companheiro de madrugada.

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