Se estivesse vivo, Ray Charles faria 95 anos nesta terça, 23 de setembro. Nascido Ray Charles Robinson (Albany, 1930), ele perdeu a visão ainda criança, provavelmente por glaucoma, e trocou o mundo visível por um universo de som, pulse e síncope.
Ray encurtou o nome artístico para não se confundir com o boxeador Sugar Ray Robinson e, a partir daí, reescreveu as regras do que chamamos de música popular norte-americana.
Nos anos 1950, na Atlantic Records, Ray combinou blues, jazz, rhythm and blues e gospel com uma liberdade até então impensável. Deu ao público um novo idioma, a soul music, em faixas-símbolo como “I Got a Woman” e “What’d I Say”. Já nos anos 1960, na ABC Records, cravou a ponte com o country em Modern Sounds in Country and Western Music (e seu “Vol. 2”), quando “Georgia on My Mind” e “Hit the Road Jack” mostraram que gênero é só o ponto de partida, e que controle artístico também podia estar nas mãos de um artista negro num grande selo.
Ray chamava Nat King Cole de farol. Ouvia Louis Jordan e Charles Brown, além de cultivar amizade e parcerias com Quincy Jones. Para Frank Sinatra, ele foi “o único verdadeiro gênio do show business”. Décadas depois, a Rolling Stone o colocaria entre os maiores cantores e artistas de todos os tempos. O reconhecimento apenas traduzia o que as gravações já gritavam: a música de Brother Ray é arquitetura emocional e engenharia rítmica ao mesmo tempo.
O cinema tratou de eternizar esse arco em “Ray” (2004), biografia dirigida por Taylor Hackford. O filme foi muito bem recebido por público e crítica, especialmente pela atuação de Jamie Foxx no papel-título: um trabalho de corpo inteiro, da postura ao fraseado, que foge da imitação e encontra verdade no gesto musical e na ferida pessoal.
O desempenho rendeu a Foxx o Oscar de Melhor Ator, além de BAFTA, Screen Actors Guild e Globo de Ouro. Um raro “clean sweep” dos principais prêmios do circuito, coroando uma interpretação que virou padrão-ouro para cinebiografias musicais.

Jamie Foxx viver Ray Charles no cinema (Foto: Divulgação)
“Ray” também funciona como porta de entrada para quem quer ouvir melhor o que o filme mostra: o piano percussivo, o drive vocal que roça o sermão e o riso, a mistura de sagrado e profano que tanta polêmica causou quando ele levou o gospel ao salão do R&B. E, por baixo do mito, a figura do arranjador exigente, do líder de banda e do empresário atento. O artista que lutou por propriedade de masters e autonomia antes de isso virar pauta corrente.
Para celebrar os 95 anos, vale voltar aos discos-chave e, claro, rever o filme. Disponibilidade (aluguel): Amazon Prime Video, Apple TV, YouTube e Google Play. Perto da borda do jazz, do country, do blues ou do pop, Ray sempre preferiu o meio-fio onde os estilos se encontram. Foi ali que ele inventou um som que ainda nos ensina a sentir, com swing, risco e luz.