Em 1º de outubro de 1984, o U2 largou a estética marcial de War e mergulhou em um outro clima. Menos grito de protesto, mais bruma, textura, vertigem. Com Brian Eno e Daniel Lanois no comando da produção, e os corredores de Slane Castle servindo de laboratório, The Unforgettable Fire soou como um desvio calculado. Guitarras em delay que viram atmosfera, baixo e bateria mais elásticas, sintetizadores que sopram pelas frestas.
“A Sort of Homecoming”, “The Unforgettable Fire” e “Bad” são quase paisagens; “Pride (In the Name of Love)” mantém o pulso pop, mas agora com uma elegância que a banda não tinha exibido ainda.
A recepção na época veio com sobrancelhas arqueadas. Parte da crítica estranhou a neblina (cadê os riffs à prova de estádio de War?), enquanto outra metade celebrou o risco. Quatro décadas depois, o veredito é generoso, pois The Unforgettable Fire envelheceu como um turning point, o exato momento em que o U2 aprendeu a usar o espaço entre as notas.
A mítica performance de “Bad” no Live Aid (1985) consolidou a fase: oito minutos de crescendo, improviso e catarse coletiva, mostrando que o “ambiente” podia, sim, incendiar arenas. O disco virou ponte para The Joshua Tree: sem a alquimia Eno/Lanois e sem essa paleta, não haveria o U2 monumental de 1987.
O mundo de 1984 ajudou a moldar o disco. Era o auge da Guerra Fria e da retórica Reagan/Thatcher, o ano “orwelliano” de profecias tecnológicas, a MTV ditando códigos visuais, o Macintosh estreando, o walkman no bolso e o pós-punk se desdobrando em dream pop e ambient pop (Cocteau Twins, Talk Talk). Tudo empurrando bandas de rock a soarem menos óbvias. Nesse contexto, The Unforgettable Fire conversa com o minimalismo de Eno, com o art-funk do Talking Heads e com a liturgia do próprio U2: espiritualidade laica, causas humanitárias, memória (o tributo a Martin Luther King em “Pride”). É um álbum que preferiu sugerir a declamar, erguer arquitetura ao invés de tijolada, e por isso mesmo atravessou as décadas com um brilho oblíquo.
Atualmente, ele soa “alternativo” no melhor sentido: não tenta vencer pelo volume, mas pelo relevo. A guitarra de The Edge é desenho de luz, Larry e Adam seguram o chão com economia, Bono canta menos herói, mais peregrino. Se War foi marcha, The Unforgettable Fire é horizonte, e 41 anos depois ainda arde quieto, como quem sabe que algumas revoluções começam acendendo o ar.