Na noite de 18 de julho de 64 d.C., Roma ardia em chamas. O fogo, iniciado sob circunstâncias ainda nebulosas, consumiu durante seis dias dez das quatorze regiões da cidade. Três foram inteiramente destruídas. Na malha apertada e inflamável das ínsulas — edifícios de madeira onde vivia a maioria da população —, o incêndio encontrou sua trilha, como se obedecesse a um roteiro já ensaiado.
As perdas foram culturais, materiais, simbólicas: o Templo de Júpiter Estator, o lar das Virgens Vestais, dois terços de uma Roma que ainda se pensava eterna.
O episódio não sobreviveu apenas nas páginas de Tácito, Suetônio ou Dión Cássio. A literatura, o cinema e até a música o reinventaram como alegoria do poder, da loucura e da perseguição. Entre os romances mais emblemáticos está Quo Vadis, de Henryk Sienkiewicz, adaptado para o cinema em 1951 por Mervyn LeRoy. A grandiloquência do épico hollywoodiano — com direito a Peter Ustinov como Nero e a brutalidade das arenas — encapsula em celuloide não apenas a tragédia urbana, mas o nascimento de uma narrativa: a do cristianismo como resistência, sangue e fé.
No filme, Roma queima sob a batuta do imperador que deseja cantar uma nova Troia. A cidade real — com suas ruas tortuosas e seus vícios antigos — deveria, segundo o delírio de Nero, dar lugar à sua Nova Roma. A versão artística casa-se com a tradição cristã: o incêndio como pretexto para lançar os seguidores de Cristo às feras, às cruzes e às fogueiras.

A Roma em chamas é também o parto de um martirológio: Pedro crucificado no Circo de Nero, Paulo decapitado a caminho de Óstia. Tudo documentado, canonizado, reimaginado.
A cultura pop não deixou essas brasas se apagarem. Da capa de CD à tela da BBC, o incêndio de Roma permanece um código simbólico. No quarto episódio da série Doctor Who, Nero recebe a sugestão acidental de queimar Roma; no século XXI, o programa de gravação de CDs “Nero Burning ROM” revive, com ironia digital, a lenda do imperador incendiário. Músicas como "Nemoralia", da banda norueguesa Ulver, e faixas como "Roma 64 C.E." do Behemoth invocam o trauma urbano como metáfora do colapso moral e político.
Hoje, o incêndio de Roma é memória ardente, reescrita em camadas. Historiadores como Massimo Fini sugerem que Nero foi vítima de manipulação, bode expiatório de cronistas hostis e cristãos ressentidos. Talvez. Mas a imagem — real ou construída — do imperador tocando lira diante do caos serve mais como símbolo do poder que se encanta com sua própria destruição do que como simples registro factual.
E assim seguimos, relendo Roma entre cinzas e celuloide. Como sugere o encarte de Quo Vadis, talvez o que está em jogo não seja apenas o que foi perdido no fogo, mas o que foi aceso em nós ao assistir a ele arder.
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