Raul Seixas, 1983: entre a negação do profeta e a reinvenção no limiar
Disco homônimo marca fase de transição na carreira de Raul, entre o apelo popular e a desconstrução de sua imagem profética.
Por LockDJ
Publicado em 26/04/2025 15:18
Música
Carimbador Maluco era um personagem infantil em meio ao colapso silencioso do artista (Foto: Reprodução)

Lançado em 26 de abril de 1983, o disco homônimo de Raul Seixas marca um momento decisivo — e conflituoso — na trajetória do artista baiano. Quarenta e dois anos depois, o álbum ainda ecoa como um dos registros mais inquietos do seu catálogo. Um disco que, embora embalado pela leveza aparente de um público infantil recém-alcançado, sustenta nas entrelinhas a crônica de um corpo que já cambaleava entre o desgaste físico e os resquícios de uma mitologia forjada à base de contradição.

 

O álbum entrou no circuito nacional com o suporte da gravadora Eldorado, distribuído pela EMI-Odeon, e vendeu mais de 100 mil cópias, empurrado pela força midiática de "Carimbador Maluco", faixa que se tornaria porta de entrada para um novo público. A performance de Raul no especial da Globo, ao lado da Turma do Balão Mágico e dos Trapalhões, carimbava, literalmente, a tentativa de reconstrução de uma imagem artística mais acessível, menos messiânica, mais pop.

 

Mas o disco vai além do personagem infantil.

 

Gravado após sua mudança para São Paulo, o trabalho surge no contexto de um Raul dividido entre a recusa ao chamado BRock da década de 1980 — que começava a ascender com bandas como Barão Vermelho, Paralamas e Legião Urbana — e a tentativa de reafirmar o “rock de verdade” como uma espécie de guerrilha estética pessoal. Ao mesmo tempo, ele já não desejava manter a figura do profeta libertário dos anos 70, que o consagrou como ícone contracultural.

 

Nesse terreno ambíguo, surgem canções como “Coração Noturno”, que entrou na trilha sonora da novela Louco Amor, e as faixas "Quero Mais", "Babilina" e "Não Fosse o Cabral", que chegaram a ser vetadas pela censura e só foram liberadas após negociações. A presença do controle estatal e da autocensura também tensionam a obra — mesmo quando não há grito, há contenção.

 

O Raul de 1983 estava em transição. O disco capta o início do fim da estrada, quando a pancreatite crônica, as recaídas com álcool e o desgaste emocional cobravam presença. Ele ainda tentava manter alguma estabilidade, dividindo os palcos com o cotidiano familiar, mas a separação com Kika Seixas e o afastamento das apresentações ao vivo nos anos seguintes mostram que essa trégua foi breve.

 

Raul Seixas não é um disco de ruptura, nem de retorno. É um documento — por vezes escorregadio — de um artista cercado pelos fantasmas do próprio legado, tentando remontar-se sem se repetir. A criança que canta junto em Carimbador Maluco talvez não entenda que ali também habita a sombra de um homem cansado, mas essa é justamente a força do álbum: sua capacidade de se fragmentar em versões possíveis.

 

Em um tempo de narrativas excessivamente lineares, Raul ainda escapa por entre os dedos. Como fez durante toda a vida.

 

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