O outro Descobrimento do Brasil: perfeição às avessas
Lançado em 1993, o álbum reflete um país em crise, uma banda em ruptura e um artista em desintegração.
Por LockDJ
Publicado em 22/04/2025 20:54 • Atualizado 22/04/2025 20:56
Música
Mais do que um título histórico, uma expedição emocional.

No mesmo 22 de abril em que os livros de história celebram o marco da chegada de Pedro Álvares Cabral ao que hoje chamamos de Brasil, a Legião Urbana parece ter assinado uma versão alternativa desse “descobrimento” — só que sem as caravelas, o latim e a catequese. Em 1993, Renato Russo lançou com sua banda Descobrimento do Brasil, um disco que, à primeira audição, soa como um álbum de confissões. Mas, aos poucos, revela-se também como um retrato brutal de um país esfacelado por dentro — e por fora.

 

A escolha do título não é aleatória. Ela carrega ironia e ambiguidade. O Brasil que se descobre neste disco não é o do passado glorificado em páginas de livro didático, mas o do presente em ruínas emocionais e éticas. É o Brasil dos afetos partidos, das relações falidas, da fé cambaleante e da desesperança cotidiana. O país que habita o disco é um campo minado de lembranças, culpas, recaídas e, às vezes, sopros de beleza.

 

Renato Russo estava instável. A Legião Urbana, ainda em formação clássica com Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos, se mantinha unida à base da resiliência. Os arranjos estavam mais leves, melódicos, mas o peso vinha nas letras — e essas carregavam mais do que poesia: eram documentos íntimos de um artista que já enxergava a finitude no espelho.

 

Perfeição, a faixa mais política do álbum, chega como uma pedrada melódica, uma crítica dilacerante à sociedade brasileira. Ao mesmo tempo em que ironiza a hipocrisia, os valores invertidos e a cultura do ódio, a música termina com um convite que soa quase como profecia:

 

Vamos celebrar a estupidez humana / A estupidez de todas as nações...

Vamos celebrar nossa bandeira / Nosso passado de absurdos gloriosos.

Vamos celebrar a juventude sem escolas, as crianças mortas.

Vamos celebrar nossa justiça / A ganância e a difamação.

E a fome / Comemorar como idiotas...

Vamos celebrar nossa tristeza / Vamos celebrar nossa vaidade.

Vamos comemorar como idiotas / A cada fevereiro e feriado.

 

Perfeição não poupa ninguém — nem o ouvinte. O Brasil de 1993, cantado por Renato, é um país que sangra em praça pública. E o mais desconcertante é que a música poderia ter sido escrita hoje. A letra não envelheceu. Talvez tenha até amadurecido.

 

 

Mas nem só de crítica vive o disco. Faixas como Vinte e Nove e Love in the Afternoon revelam o Renato Russo mais humano, mais frágil. O que caiu, levantou, e ainda cambaleia entre a vontade de desaparecer e o desejo de seguir. Já em Vamos Fazer um Filme, existe um pedido por mais poesia, uma tentativa de criar um universo paralelo onde os erros pudessem ser editados.

 

Giz, uma das baladas mais sentidas da banda, é quase uma carta sem destinatário. Uma tentativa de comunicar o indizível. Uma canção para ninguém, mas que toca a todos.

 

É impossível não mencionar também a atmosfera da época. O Brasil vivia o início dos anos pós-impeachment de Collor, as desilusões democráticas, os planos econômicos que não vingaram. Descobrimento do Brasil é também um espelho dessa década incerta e de uma geração tentando compreender seu lugar.

O Renato Russo que emerge nesse disco não é o líder revolucionário dos palcos dos anos 80. É o homem que viu seus demônios de perto, os ouviu cantando no próprio ouvido e tentou, à sua maneira, traduzi-los em canções.


Fecho:

 

No fim das contas, Descobrimento do Brasil é um álbum que desmonta o ouvinte com calma. Não é sobre uma pátria descoberta, mas sobre o que resta quando o chão cultural e emocional desaparece.

 

Renato Russo não descobriu um país — ele desnudou o que havia de mais humano nele: a dor, o desejo, o fracasso e a memória. E fez isso com a precisão de quem sabia que não teria muito tempo para contar essa história.

 

 

#ODescobrimentodoBrasil #LegiãoUrbana

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